segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Na natureza está o melhor remédio

Por Rafael Morais Chiaravalloti

No começo era a simplicidade. Qualquer que seja a linha cientifica que seguirmos para explicar a origem da vida na terra, sempre começaremos pela simplicidade. Até mesmo teorias que envolvam origem da vida por ação extraterrestre (panspermia), devem admitir que os próprios extraterrestres começaram simples em algum lugar nos confins do universo. Mas considerando que a vida tenha surgido na terra, no começo apenas existiam átomos e moléculas livres no espaço, provavelmente, água, dióxido de carbono, metano e amônia. De algum modo, ainda não exatamente claro, essas moléculas inorgânicas se juntaram e originaram as moléculas orgânicas. Por outro modo, também não exatamente claro, as moléculas orgânicas formaram as moléculas replicadoras. E essas, de uma forma menos clara ainda, começaram a se replicar, dando início à complexidade.

Quando essas moléculas começaram a se replicar, não reproduziam suas “filhas” exatamente iguais, havia diferenças ou erros da replicação. Vale lembrar que essa não é uma característica específica dessas moléculas, pois sempre ocorrem erros na natureza, nada que se reproduz é uma cópia perfeita. Podemos até dizer que errar é mais do que humano, é natural.

Em um mundo cheio de moléculas replicadoras com algumas características diferentes umas das outras, aquelas que apresentavam mais características que facilitavam a captura de alimento poderiam se replicar mais. Replicando-se mais, deixavam tal característica mais presente na população. Contudo, como também não originavam réplicas perfeitas, algumas vezes outras moléculas apareciam com características mais vantajosas, permitindo reproduzir-se mais. Com isso, cada vez mais as moléculas começaram a ter características diferentes e diversas, tornando-se complexas (Dawkins 2001).

De acordo com a mudança na paisagem, com a conquista de novos ambientes, ou competição entre organismos, novas características começam a ficar mais presentes. Por exemplo, os primeiros ancestrais das aves sofreram várias adaptações para poder conquistar o espaço aéreo. Além das asas, surgiram diversas outras características interessantes, dentre as quais está a do sistema digestivo que, para não ser um peso a mais durante vôo, é reduzido e poucas fezes podem ser acumuladas. Esse é o motivo da uma praça cheia de pombos ser uma área de “risco”. Mas as adaptações não são apenas anatômicas, podem ser novas moléculas, novos modos de utilização de antigas moléculas, ou basicamente qualquer nova situação que cause vantagem.

Desde o surgimento das chamadas “moléculas replicadoras” até hoje, passaram-se, no mínimo, 3 bilhões de anos, ou seja, considerando todos os seres vivos é inimaginável o número de adaptações que já surgiram. Uma dessas adaptações ocorreu na casca de algumas espécies de árvores chamadas de salgueiro (Salix). Na sua casca é encontrada a salicina que, como uma adaptação, surgiu para proteger a planta de bactérias e fungos oportunistas. No entanto, além de proteção à planta, a salicina tem um outro importante papel: ser poderoso fármaco para o ser humano. O seu poder é tão grande que existem registros de seu uso desde Roma antiga. E foi a partir dela que, em 1899, o laboratório Bayer conseguiu sintetizar o ácido acetil-salicílico (AAS), a chamada aspirina.

Com o uso da aspirina ao longo dos anos, e em larga escala, passou-se a crer que ela seria o mais espetacular feito da indústria farmacêutica, pois tem ação analgésica, anti-térmica, efeito protetor e preventivo na formação de coágulos no sangue, e estudos recentes têm mostrado que pode prevenir o câncer de boca, garganta, esôfago, e provavelmente pulmão, reto, útero, seios e pâncreas. Tamanha é a sua popularização e o seus benefícios que hoje é, muitas vezes, considerada um das maiores invenções da humanidade (Michel 2010).
Assim, a partir de uma adaptação de um grupo de plantas para melhor ajustar as condições ambientais, sintetizou-se um dos mais poderosos fármacos da história da humanidade. A aspirina aumentou o bem estar e a expectativa de vida da humanidade e nos possibilitou beber na noite anterior e trabalhar no dia seguinte.

Embora a aspirina seja o mais importante remédio primeiramente sintetizado a partir de características de espécies na natureza, milhares de outros também já o foram. Cerca de 40% todas as das drogas prescritas e não prescritas usadas em todo mundo possuem ingredientes ativos que são extraídos de plantas e animais (Begon 2007). Exemplos interessantes incluem os venenos de cobra, como o da cascavel ou jararaca que possuem poderosos efeitos cicatrizantes e preventivos de infarto. Mamíferos, como o tatu-galinha que tem sido usado no estudo da hanseníase e na preparação de uma vacina para a doença, ou o peixe-boi da Flórida que tem sido usado para entender a hemofilia. E mais comuns, cascas, folhas e raízes de plantas que são usadas para cura de diversos tipos de doenças, como a droga usada para o tratamento da leucemia que é derivada de uma planta de Madagascar chamada de Mirta Rosa (Vinca rosea), e a casca do Teixo do Pacífico (Taxus brevifolia) que tem promovido o tratamento de câncer de ovário. Vale lembrar que os benefícios não estão apenas ligados à questão da saúde humana; fármacos para a beleza e estética são constantemente sintetizados.

Essa ampla abrangência faz da industria farmacêutica ser uma das mais lucrativas. Por uma estimativa da Fundação Getúlio Vargas de 2007, a capitalização da indústria farmacêutica – numero de ações que ela tem no mercado multiplicado pelo preço unitário de cada uma – é de 1 trilhão e 600 bilhões de dólares, a indústria automobilística, para se ter uma idéia, é de “apenas” 300 bilhões.

Assim, através da chamada Bioprospecção - exploração e investigação de recursos provenientes da fauna e da flora, a fim de identificar princípios ativos para a obtenção de novos produtos e processos com vistas à comercialização – a humanidade está mais saudável e uma forte base econômica é sustentada.
Por isso, se você é uma espécie que está preocupada com a sua preservação, ai está ai uma boa maneira de se defender e argumentar para a sua sobrevivência. Talvez a cura para doenças como AIDS, câncer, Alzheimer etc, podem estar em você!

O grau de importância das espécies para criação de novos fármacos

Na tentativa de mensurar o tamanho dessa importância, algumas pesquisas científicas tentam estimar o valor que a indústria farmacêutica estaria disposta a pagar para a conservação da natureza (pensando que elas poderiam encontrar algum fármaco que geraria milhares de dólares). David Simpson, colaborador da organização não governamental norte-americana Resources for the Future (RFF), resumiu alguns desses estudos e concluiu para conservar as principais florestas e a suas espécies do mundo (como Madagascar, Mata Atlântica, Amazônia) há disposição de pagar, em média, U$ 0,52 por hectare. O mesmo preço de uma cartela de aspirina com desconto! Achou pouco? Ficou com raiva das grandes corporações? Mas a culpa não é apenas delas.

O baixo preço não é apenas culpa da falta de disposição financeira da indústria farmacêutica, mas também da chamada redundância de adaptações. Imagine a primeira espécie de ave que surgiu, diversas adaptações foram sendo selecionadas para que melhor se adequasse ao ambiente. Contudo, como as réplicas dessa primeira espécie não eram perfeitas, outras adaptações foram surgindo, assim como outras espécies. Mas, muitas das antigas adaptações continuaram nas novas espécies, pois ainda eram vantajosas. Assim, atualmente, grande parte das características são comuns em milhares de espécies ou, ao menos, em grandes grupos de espécies. Por exemplo, a salicina, a substância precursora da aspirina, é encontrada em diversas espécies, e não apenas em uma. Ou mesmo a cafeína, que é considerada uma substância pouco repetida na natureza, é encontrada em mais de 60 espécies de planta (Mazzafera et al. 1996). Por isso, a cura da AIDS, de tipos de câncer ou Alzheimer está, provavelmente, em centenas de espécies na natureza, e não em apenas uma.

Essa incrível redundância faz com que a industria farmacêutica, que depende de uma natureza conservada para poder desenvolver novos medicamentos, não atribua grande importância monetária nessa preservação. Pois se uma espécie for extinta, outras poderão suprir a sua falta. Portanto, devemos incluir outros fatores além da bioprospecção para argumentar uma conservação de espécies mais abrangente.

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