sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Outrora pequenas cooperativas, hoje grandes negócios

O mercado orgânico surgiu da contestação das práticas das segunda e terceira revoluções agrícolas atrelada à propostas de construção de novos estilos de vida impulsionados por diversos movimentos e correntes de agricultura, como a orgânica, a biodinâmica, permacultura, entre outros. Tais movimentos “criaram circuitos alternativos de integração entre produção e consumo e foram sendo apoiados por redes sociais de produtores, de consumidores, de técnicos e de ONGs que caminharam para a institucionalização do conhecimento e da prática acumulada, via instrumentos como a certificação” (Storel Jr. & Ramos, 2008). Entretanto, há três décadas, surgiram outros atores sociais no cenário orgânico, como os governos, as grandes redes varejistas e a indústria alimentícia, que dão nova dimensão à produção e comercialização desses produtos, transformando-os em uma nova tendência mundial de consumo.

Assim, em vários países europeus, como França, Itália e Alemanha, surge o subsídio governamental a produtores agrícolas orgânicos, motivado tanto pelo contexto de crise ecológica, onde emergem grupos e partidos ambientalistas, quanto pela resistência dos agricultores em exercerem sua vocação de produtores agrícolas (Storel Jr. & Ramos, 2008). Além disso, no cenário internacional, o mercado estruturou uma nova forma de regulação onde a esfera pública e a privada se misturam, em que esta passa a assumir a função daquela. Logo, as certificadoras regulam, fiscalizam e autorizam a produção de mercadorias orgânicas e as redes varejistas, por sua vez, escolhem quais selos e certificados de garantia fornecerão aos seus clientes. Dessa forma, o Estado transfere não apenas a regulação para as certificadoras, mas também a tarefa de vigilância sanitária, que passa a ser exercida pelo setor varejista (Marsden, 1994 apud Storel Jr. & Ramos, 2008).

Atualmente a busca por alimentos mais confiáveis, produzidos sob normas sanitárias adequadas e de fácil identificação da origem, se intensificou ainda mais na Europa e nos EUA em decorrência do aumento de doenças e contaminações. O enfraquecimento do poder estatal frente a obrigações de regulação, fiscalização e vigilância sanitária causou danos sérios tanto ambientais, quanto às saúdes humana e animal. Nos Estados Unidos, o Food and Drug Administration (FDA), órgão federal americano correspondente à Anvisa, no Brasil e o United States Departament of Agriculture (USDA), correspondente ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento são compostos e regidos por inúmeros profissionais oriundos de grandes corporações. Consequentemente, esses órgãos muitas vezes adotam medidas e tomam decisões pautadas em prol de outros interesses que não os da saúde e integridade humana e ambiental. Vaca Louca, Salmonela, E. Coli e transgênicos são exemplos de surtos de contaminações e/ou riscos que expõem a fragilidade desses órgãos e sendo, portanto, mandatório mais transparência no sistema.

A partir dessa nova relação estabelecida entre os mecanismos que garantem a segurança do alimento fornecidos pelas certificadoras e sua constante demanda pelas redes varejistas que floresce o mercado orgânico. Dentro dessa lógica de operação, muitas das fazendas comunais hippies dos EUA, durante a contracultura, são hoje marcas ou fornecedoras de grandes empresas alimentícias (Pollan, 2007). O documentário americano Food, Inc mostra essa transição de cooperativas orgânicas para grandes negócios através do depoimento de Gary Hirshberg, presidente da Stonyfield Farm, maior produtora de iogurte orgânico e terceira maior marca de iogurte em geral nos EUA. Gary fazia parte do instituto 'Novo Alquimista' (New Alchemy), formado em 1971 por um grupo de biólogos em uma fazenda de laticínios em Cape Code (no estado de Massachusetts). Tal grupo investigava formas de tornar fazendas de pequena escala viáveis, implementando técnicas como: uso de energia solar e eólica, controle biológico de pragas, compostagem orgânica, etc (Belasco, 1993). Além de empregar tais técnicas alternativas, eles também incorporavam o feminismo, a ideologia de retorno ao campo e de preparação artesanal da comida nos preceitos da contraculinária em seu modelo de vida (Belasco, 1993). Abaixo, Gary conta sobre como chegou onde está, discutindo sobre sustentabilidade e orgânicos em uma mesa com grandes corporações:

“O problema era que nós estávamos pregando para um público já convertido, a mensagem não chegava às pessoas a quem deveríamos atingir e as fontes de apoio já haviam se esgotado (...) Nós não iremos nos livrar do capitalismo, certamente não conseguiremos nos libertar dele no tempo necessário para impedir o aquecimento global e reverter a intoxicação do nosso ar, da nossa água e dos nossos alimentos (…) Não podíamos continuar sendo David contra Golias, nós tínhamos que nos tornar Golias. Queríamos provar que o negócio da alimentação podia ser parte da solução para os problemas ambientais do planeta e, ao mesmo tempo ser rentáveis (...) Muitos antigos amigos ambientalistas ficam horrorizados, mas quando lhes explico do impacto que uma encomenda como o Wall-Mart tem em termos de toneladas de agrotóxicos e fertilizantes químicos evitados, deixamos as emoções de lado e focamos apenas nos fatos” (Gary Hirshberg in Food, Inc).

Em 2001, a Stonyfield Farm foi comprada pelo grupo francês Danone, um conglomerado alimentício de aproximadamente US$ 23 bilhões. De acordo com alguns pesquisadores de sistemas de alimentos agrícolas, como o economista e professor da Universidade da Califórnia, David E. Goodman (1999), o mercado orgânico já foi cooptado pelas grandes empresas. No Brasil, apesar da tendência de seguir o mesmo rumo do cenário internacional (onde pequenos produtores fornecem para grandes empresas que passaram a criar 'linhas orgânicas'), há uma maioria de médios produtores de orgânicos, correspondente a cerca de 90% do número de produtores envolvidos na etapa de produção (cuja mercadoria, junto aos grande produtores é basicamente exportada), e os pequenos produtores corresponderem aproximadamente a 10%, voltando sua produção quase que exclusivamente ao mercado interno (Buainain & Batalha, 2007).

Do final da década de 80 até hoje, verifica-se grandes avanços da legislação e da disponibilidades de certificadoras e insumos agrícolas na agricultura orgânica. Entretanto, mesmo com com um cenário favorável e de urgência socioambiental, há ainda alguns obstáculos à adesão e à implantação da agricultura orgânica que devem ser removidos ou minimizados para que ela cresça como um negócio de fato sustentável. Os principais entraves identificados são: o posicionamento omisso da opinião pública quanto aos males da agricultura química; a manutenção do monopólio das grandes empresas agrícolas; os gastos elevados com a transição e manutenção dos sistemas agrícolas orgânicos; a dependência dos produtores à industria da certificação; as embalagens que, além de gerarem lixo, deveriam ser mais esclarecedoras e o comportamento dos consumidores que, na busca apenas por saúde, não serão capazes de pressionar a indústria alimentícia a adotar práticas sustentáveis.

2 comentários:

  1. Ana.
    Esse assunto é sempre muito pertinente, por se tratar de saúde e cuidado pessoal. Por isso a omissão ou falta de informação é diretamente prejudicial ao meio e à população. Ocorreu-me uma dúvida: na sua lista de entraves identificados, qual seria o papel da ANVISA?

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  2. Olá Alexandre!

    A Anvisa já vem desempenhando uma papel importante em alertar sobre os males dos agrotóxicos em relatórios. No entanto, seria interessante também, como órgão nacional de questões sanitaristas, desenvolver mais pesquisas sobre as embalagens de isopor e pástico dos produtos orgânicos, inclusive estudar possíveis alternativas ou substituição do material sem comprometer as regras de armazenamento.

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