quarta-feira, 7 de julho de 2010

O papel dos hábitos alimentares nas transformações políticas: o exemplo da agricultura orgânica e do vegetarianismo na contracultura

Por Ana Moraes Coelho*

Segundo Warren James Belasco, professor de Estudos Americanos da universidade de Maryland, a comida é uma metáfora daquilo que nós gostamos ou não em nossa sociedade. Na história da civilização ocidental, os conflitos sobre comida e hábitos alimentares sempre são acompanhados de um fundamento político! O redescobrimento dos alimentos orgânicos e do vegetarianismo, acompanhados do movimento ecológico nas décadas de 60 e 70, são frutos da reação às destruições da natureza e do modo de vida de comunidades tradicionais.

Os meios universitários dos Estados Unidos foram palco de disseminação da contracultura, semeada pioneiramente com os Diggers. Inspirados no movimento agrário de trabalhadores rurais ingleses do século XV, os Diggers da contracultura surgiram em meados de 1960, no distrito de Haight-Ashbury, em São Francisco, combinando duas frentes que floresciam na cidade: a cena artística teatral do meio boêmio e underground com o movimento New Left de paz e direitos civis. Dessa forma, através do teatro de rua e de boicotes a restaurantes e a produtos industrializados, distribuindo e produzindo sua própria comida, os Diggers posicionaram o alimento no centro do ativismo dos anos sessenta, baseados na emergência da consciência ecológica. Talvez pelo anonimato do grupo, pela repressão ou pelo caráter vanguardista de suas práticas e performances, numa época onde os radicais da contracultura ainda estavam descobrindo a cena urbana psicodélica, os Diggers já haviam se dissolvido como grupo ideologicamente identificável no começo de 1969. Porém deixaram um legado para os futuros ativistas.

Em abril de 1969, estudantes universitários e moradores de Berkeley formaram a Comissão Robin Hood. Seguindo os mesmos princípios de evolução harmoniosa através da saúde e difusão dos alimentos orgânicos defendidos pelos Diggers, a Comissão criou o People's Park, a partir da ocupação de um terreno baldio pertencente à Universidade da Califórnia. A área passou então a ser utilizada publicamente por frequentadores e moradores, que nela cultivaram uma horta e jardins com plantas nativas. O jornalista e professor Michael Pollan, em seu livro O Dilema do Onívoro, explica a ocupação da seguinte forma: “Dizendo-se 'reformadores agrários', os militantes anunciaram que desejavam estabelecer naquele lugar um modelo para uma nova sociedade cooperativa, construída de baixo para cima; e isso incluía o cultivo da sua própria comida 'não contaminada'”.

O People's Park, apesar de ter sucumbido à repressão da política opressiva do então governador da Califórinia Ronald Reagan, também deixou importantes contribuições para o movimento da contracultura: o resgate da ecologia!

Seis meses depois do acontecido no terreno baldio da universidade, a palavra ecologia deixou de ser apenas a denominação de um ramo de estudo da biologia, passando a assumir também o papel de uma arma poderosa para a conscientização de conservação da natureza e resgate das práticas de cultivo orgânicas, principalmente pelo contexto de crise ambiental, como o questionamento do uso do pesticida DDT (Dicloro- Difenil-Tricloroetano), queimadas e derramamentos de petróleo. A “ecologia” saiu das prateleiras e estantes nas bibliotecas das universidades para ser amplamente difundida no discurso dos alternativos, ativistas e radicais, sobre vida, morte e sobrevivência.

Assim, o ambientalismo emerge da New Left como principal veículo de esperança e afronta, atrelado ao socialismo revolucionário e às reivindicações dos direitos civis e do movimento anti-guerra. Os ecologistas defendiam um retorno às práticas alimentares e de cultivo tradicionais, inspirando-se no modelo de organização social das comunidades nativas americanas. Dessa forma, consideraram mais importante iniciar o ativismo através da transformação voluntária e individual, realizada com seus próprios passos e em seus lares. Essas pessoas acreditavam poder subverter a economia vigente, que impulsionava e produzia para uma cultura de consumismo desenfreado em massa, por meio da incorporação de um estilo de vida mais simples e natural.

A preocupação com alimentos de origem animal também estava inserida no movimento de transformação dos hábitos alimentares. A estrutura básica de uma refeição norte americana, estabelecida desde o período colonial, tem como peça central a carne animal adornada por vegetais, frutas e grãos -- acompanhamentos meramente decorativos. Somando-se a isso, o consumo de carne, principalmente de vaca, aumentou muito após a II Guerra Mundial, época da mecanização da agricultura. O excedente de grãos quimicamente cultivados passou a alimentar o gado, que crescia agora em regime de confinamento, economicamente mais favorável ao pecuarista. Essa nova prática agropecuária propiciou o surgimento de cadeias de restaurantes fast-food ancoradas no hambúrguer. A disponibilidade de carne barata era, e continua sendo, um componente central na ideologia americana de abundância.

Assim, o questionamento e a reprovação do consumo de alimentos de origem animal foram sustentados, na década de 60, não só pela questão ética dos direitos dos animais e ecológica dos impactos ambientais da produção, mas também pela posição política contrária ao culto à abundância e ao consumismo em massa. Tanto é que dietas orientais taoístas e macrobióticas, por exemplo, se tornaram amplamente populares entre os adeptos da “contracozinha”, tanto pelo seu aspecto espiritual, ético e funcional, como pela simbologia que sua incorporação carrega de simpatia e solidariedade aos vietnamitas, dentro do contexto da Guerra do Vietnã, no qual a contracultura estava inserida.

Dessa forma, o movimento de contracultura iniciado em meados dos anos 60 em meio urbano e de caráter pós-industrial cedeu lugar a uma eco-cultura de orientação rural e de subsistência pré-industrial no fim da mesma década, como afirma Belasco. Algumas pessoas hoje em dia podem até ter dificuldade em achar algo de revolucionário no hábito de se comer arroz integral e cenouras cruas colhidas da própria horta, mas a mudança da dieta alimentar é uma transformação substancial. Diferentemente de usar uma sacola ecológica ou de ouvir música folk de protesto, mudar os padrões alimentares exige um grande comprometimento pessoal, uma vez que são hábitos que nos são passados e construídos desde nosso nascimento. E, mesmo em uma cultura onde moda e comportamentos são efêmeros, os padrões alimentares ainda mudam de forma lenta, inclusive no atual momento de revisão das nossas práticas em prol de atitudes mais sustentáveis.

*Vegetariana há 4 anos e atual aluna de mestrado da Escola Superior de Conservação
Ambiental e Sustentabilidade, mestrado profissional fruto da parceria entre o IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, Intituto Arapyaú e a Natura Cosméticos.

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