sexta-feira, 4 de junho de 2010

A produção de alimentos orgânicos e a conservação ambiental


A relação predatória que o homem ocidental estabeleceu com natureza, principalmente a partir da era industrial, levantou, e ainda vem levantando, diversas reflexões e correntes de estudo no campo científico. Com diferentes origens e propósitos em diversos países na Europa e nos Estados Unidos da América, a conservação do meio natural surgiu em ambientes acadêmicos e em ações concretas como o estabelecimento e manutenção de áreas naturais próximas aos grandes centros urbanos.
Nos Estados Unidos, as primeiras preocupações e linhas de pensamento sobre a conservação surgiram no começo do séc. XIX com uma abordagem romântica e quase religiosa, que passou, no século seguinte, a incorporar um valor antropocêntrico, dedicando sua importância exclusivamente para o desenvolvimento econômico humano (Meffe et al, 2006).

É somente com Aldo Leopold, por volta da década de 40 do século passado, que a Natureza ganha outro significado. Ela passa a ser interpretada como um sistema complexo integrado, e não composto por partes isoladas das quais umas se usa e outras são descartadas. A idéia até então em vigor anteriormente de equilíbrio estático foi substituída pelo conceito de dinâmica e perspectiva ecológica de não equilíbrio (Leopold, 1949 apud Meffe et al, 2006). Cerca de 20 anos depois, diante da crise ambiental e da abrangência das discussões dessa questão na sociedade com o movimento ambientalista, ecólogos e outros cientistas realizaram reflexões sobre os esforços e os meios de realizar a conservação. A mudança de atitude proposta por Soulé e outros pesquisadores culminou, em 1985, no surgimento de um novo campo da ciência: a Biologia da Conservação (Soulé, 1985).

A grande inovação desse novo campo recai na proposta de que, para o sucesso da conservação de qualquer área, deve-se levar em conta o contexto de onde ela está inserida em um trabalho muito mais amplo, que envolva planos econômicos e de desenvolvimento (Meffe et al, 2006). E é por isso que a interdisciplinaridade é tão importante nesse estudo, principalmente a antropologia e economia, que contribuem para a criação na teoria e na prática de uma biosfera sustentável. Diante disso, não é apenas a diversidade biológica que cumpre um papel de grande relevância para Biologia da Conservação, mas também a diversidade humana cultural é importante para o desenvolvimento dessa ciência (Orians & Groom, 2006). A diversidade cultural abrange valores e manejos tradicionais que evoluíram por milhares de anos, inclusive muitas práticas culturais tradicionais representam soluções frente a alguns desafios, como cultivar alimento e erradicar doenças em um dado habitat.

Se a sabedoria e práticas de cultivo tradicionais podem muitas vezes ser aliados da conservação, as práticas agrícolas da nossa sociedade ocidental capitalista moderna, por sua vez, seguem o caminho oposto. A degradação e perda de habitat representam, atualmente, a maior ameaça à biodiversidade (Groom & Vynne, 2006) e os sistemas agropecuários advindos da revolução verde, os agronegócios, causam as duas coisas.

Se tentarmos reconstituir simplificadamente a trajetória de um alimento qualquer enlatado desde as prateleiras de supermercados até sua origem em alguma plantação ou pasto, simplesmente não conseguiríamos traçá-la devido ao nosso total afastamento e desconhecimento do processo de transformação do vegetal ou animal em alimento industrial (Pollan, 2006). Tal alienação é demasiado perigosa, pois permite que grandes empresas e corporações dominem quase toda a produção agropecuária em esquema de superprodução industrial e desbanca do mercado produtos advindos da agricultura familiar, cooperativas agroecológicas e demais pequenas empresas fornecedoras de produtos alternativos. Além disso, atividades desse porte ocupam e desgastam solos com vastas monoculturas e a grande maioria da produção extraída desses empreendimentos é destinada à produção de rações - a alimentação animal em regime de confinamento consome 70% do milho produzido no mundo e 44% de todos os grãos no Brasil (Embrapa, 2009).

Dessa forma, estabelece-se uma tendência das empresas e conglomerados alimentícios a gerar apenas condições economicamente favoráveis e lucrativas (Pollan, 2006). A nossa produção de alimentos é seriamente impactada por interesses maiores que não apresentam preocupações com questões críticas como: meio ambiente (desmatamento, extinção de espécies, empobrecimento e erosão do solo, poluição da água, da terra e do ar), bem como bem estar do homem (desalojamento, desintegração do seu espaço e cultura, segurança alimentar, qualidade da comida) e o animal (inseminação artificial, confinamento, maus tratos, dieta de grãos, antibióticos e abate), tudo em larga escala.

Entretanto, há algumas décadas, a alimentação e o cultivo orgânico foram categorizados como formas alternativas de agricultura e estilo de vida (Pollan, 2006). Geralmente esse tipo de cultivo ocorre em estabelecimentos policultores e pastoris com espécies perenes ao invés de anuais, movidos a energia solar em detrimento da fóssil, com uma produção diversificada, realizada de forma não mecânica com fertilizantes e defensivos naturais e locais (Trivellato & Freitas, 2003).

Diante dessa dada situação, não restam dúvidas que fazendas industriais e muitas monoculturas são insustentáveis tanto nas práticas ambientais, quanto nas humanas e éticas. Que produções orgânicas representam uma alternativa que contemple as três ópticas de análise do desenvolvimento sustentável (social, ambiental e econômica) também está claro. Por outro lado, além do desafio de garantir, com essa prática, a segurança alimentar diante do crescimento acelerado populacional sem comprometer sua sustentabilidade, há outra importante questão que recai no rumo em que esse tipo de produção está tomando agora. Ou seja, o segundo desafio consiste em fazer com que a produção e o consumo de orgânicos representem de fato uma intervenção na estrutura do atual tradicional sistema alimentício e agrícola, ao invés de se tornarem apenas um negócio promissor e um novo padrão alimentar de classes sociais mais priviliegiadas, respectivamente.

No Brasil, o cenário orgânico parece mais promissor do que nunca. Nosso país é o 2º maior produtor de produtos orgânicos do mundo com um crescimento estimado entre 30% e 50% ao ano (COSTA, 2005 apud Madeira & Saes, 2007). Apesar de não estarmos nem entre os 15 países que mais consomem, o mercado interno de produtos orgânicos também cresce. Só a marca TAEQ do grupo Pão de Açúcar, por exemplo, é responsável por oferecer nas gôndolas dos supermercados mais de 300 produtos orgânicos, gerando um aumento de 38% nos itens desse segmento no ano passado (Grupo Pão De Açúcar, 2009). No entanto, pesquisas sobre o perfil de consumidores desses produtos no Brasil mostram que a maioria é composta por mulheres escolarizadas com alto poder aquisitivo e disposição a pagar mais caro por eles (Vilela, 2006; Buainain & Batalha, 2007).

Diante desse panorama, assim como foi crucial a mobilização social para que o movimento ambiental se tornasse hoje pauta de todo governo de países desenvolvidos e emergentes, o mesmo raciocínio é empregado em relação à agricultura orgânica sustentável (Wright & Middendorf, 2007). Ou seja, a conscientização, resistência, organização e escolha consciente por parte dos públicos interessados (como agricultores e consumidores) são iniciativas que de fato poderão influenciar políticas públicas e com isso impulsionar transformações na estrutura do sistema vigente. Finalmente essas mudanças poderão refletir em melhorias tanto para o ambiente, como na qualidade de vida das pessoas e animais sem comprometer o desenvolvimento econômico, atingindo, assim os esforços da conservação tando no que diz respeito à diversidade ecológica, como a humana cultural.

texto originalmente no site Mercado Ético em 21/05/2010

Referências bibliográficas:

Buainain, L. F.; Batalha M. O. Cadeia produtiva de Produtos Orgânicos. / Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Politica Agrícola, Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura; Coordenadores Luiz Fernando Buainain e Mario Otávio Batalha. Brasília: IICA: MAPA/SPA, 2007.

Embrapa: http://www.cnpms.embrapa.br/publicacoes/milho/mercado.htm , acessado 14 de dezembro de 2009.

Groom, M. J.; Vynne, C. H. Habitat Degradation and Loss. Cap 6. In: Groom, M. J.; Meffe, G. K.; Carroll, C. R.(orgs). Principles of Conservation Biology. 3° Ed. 2006. 793p.

Grupo Pão de Açúcar: http://www.grupopaodeacucar.com.br/imprensa/default_area.asp?idNoticia=7404&cod_area=0 , acessado 20 de janeiro de 2010.

Meffe, G. K.; Carroll, C. R.; Groom, M. J. What is Conservation Biology?. Cap 1. In: Groom, M. J.; Meffe, G. K.; Carroll, C. R.(orgs). Principles of Conservation Biology. 3° Ed. 2006. 793p.

Orians, H. G.; Groom, M. J. Global Biodiversity: Patterns and Processes. Cap 2. In: Groom, M. J.; Meffe, G. K.; Carroll, C. R.(orgs). Principles of Conservation Biology. 3° Ed. 2006. 793p.

Pollan, Michael. O Dilema do Onívoro. Editora Intrínseca, 2007. 480 p.

Soulé, M. E. What is Conservation Biology? BioScience, vol. 35 n. 11. 1985

Wright, W; Middendorf, G. The fight over food: producers, consumers, and activists challenge the global food system/ edited by Wynne Wright & Gerad Middendorf, The Pennsylvania State University Press, 2007. 301 p.

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