Sempre achei um dos grandes diferenciais no Mestrado da
ESCAS a possibilidade de iniciar o curso sem ter um tema pré-definido de projeto. Poder escolher um assunto novo, diferente, que tenha despertado interesse durante as atividades do curso, é de fato tentador. Mesmo não tendo trilhado este caminho, presenciei um caso emblemático na turma 2009 de Nazaré - ocasião em que um biólogo pantaneiro, após súbita metamorfose, resolveu escrever um livro sobre sustentabilidade. Por outro lado, é bom lembrar que toda essa liberdade de escolha costuma vir acompanhada de uma boa dose de ansiedade - às vezes maior até que a ansiedade da defesa. É o fantasma da indefinição do projeto de Mestrado, aterrorizando alunos indecisos na medida em que o tempo passa e ganhando força nas trombetas alarmantes sopradas do alto da biologia da conservação.
Na minha época, uma das maneiras da turma descontrair era imaginar projetos improváveis, divertidos, normalmente brincando com o histórico e as aspirações de cada um. Eram temas como "Técnicas de manejo insustentável do porco monteiro no Brasil", "Gestão holística de UCs: uma nova abordagem antropológica buscando a integração homem-natureza na Era de Aquário", "A utilização da ariranha como espécie-bandeira pela civilização Inca", ou então o ambicioso "Plano de reflorestamento da Ilha de Páscoa"
1.
Neste último caso, por mais que gostássemos de desafios, é claro que ninguém em sã consciência iria se aventurar num tema com tamanha distância geográfica, cultural e financeira da nossa realidade. Além do mais, sabedores do triste histórico de destruição ambiental e extinções na Ilha de Páscoa, víamos uma barreira praticamente intransponível para se restaurar a vegetação original. Afinal, como saber ao certo quais espécies ocorriam no local? Como produzir mudas? Como restabelecer as interações ecológicas essenciais para a sobrevivência das espécies? Tarefas que normalmente já são complicadas em qualquer lugar, para a realidade da Ilha de Páscoa tornam-se quase impossíveis. Diríamos que tratava-se de um caso totalmente perdido.
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Ilha de Páscoa, com destaque para a cratera de Rano Kau.
Coleção "A Terra vista do céu" por Yann Arthus-Bertrand. |
Para se ter uma ideia, mesmo na época em que foi descoberta pelo ocidente em 1722, a Ilha já possuía um singular aspecto de pobreza e desolação. A paisagem recoberta por grama seca, capim e restos de vegetação queimada chegou a ser confundida com areia. Para grande surpresa, os descobridores logo constataram que a Ilha era povoada. Por outro lado, hoje sabemos que quando estes primeiros habitantes chegaram da Polinésia alguns séculos antes, o cenário era bem diferente. Registros paleontológicos atestam que a Ilha já abrigou várias espécies arbóreas, incluindo uma palmeira que chegava à idade adulta aos 100 anos, podendo atingir mais de 30 metros de altura. Além das árvores, havia pelo menos seis espécies de aves endêmicas, e muitas espécies de aves marinhas nidificavam na Ilha. Durante um bom tempo aquele foi um verdadeiro paraíso livre de ameaças.
Até que chegaram os polinésios, e com eles todo o rol de mazelas ambientais que estamos acostumados a ver em nossa sociedade: caça, superexploração de recursos naturais, espécies invasoras (neste caso, principalmente os ratos), etc. Para o delicado equilíbrio daquele ecossistema as consequências foram desastrosas, conforme Jared Diamond descreve em detalhes num dos capítulos de "Colapso".
Mas como bem dizia Michel Soulè, não existem casos perdidos, apenas casos dispendiosos e pessoas desanimadas. Por uma série de coincidências e para minha grande surpresa, soube que uma das espécies arbóreas sobreviveu à catástrofe ambiental da Ilha de Páscoa. O Toromiro (
Sophora toromiro Skottsb.) é uma leguminosa pequena, de porte praticamente arbustivo e flores amarelas. Uma planta aparentemente comum, porém com uma história extraordinária e que por muito pouco não desapareceu do planeta.
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Thor Heyerdahl em frente a um Moai numa
de suas expedições à Ilha de Páscoa.
Fonte: Museu Kon-Tiki. |
Ao que tudo indica, no início do século passado restava apenas um indivíduo da espécie na Ilha de Páscoa, localizado na encosta da cratera de Rano Kau. O difícil acesso deixou a árvore a salvo dos rebanhos que circulavam por lá, mas não foi suficiente para impedir que ela fosse parar numa fogueira por volta de 1960. Porém, alguns anos antes disso, entre 1955 e 1956,
Thor Heyerdahl esteve na Ilha, e a pedido de um botânico conseguiu coletar sementes daquele último indivíduo (sim, Thor Heyerdahl é aquele mesmo famoso explorador que fez várias expedições, entre elas a de Kon-Tiki, quando construiu uma jangada utilizando técnicas pré-incaicas, zarpou do Peru e conseguiu chegar até a Polinésia Francesa depois de 101 dias navegando). Posteriormente, as sementes coletadas por Thor foram parar no
Jardim Botânico de Gotemburgo, onde até hoje persistem alguns indivíduos cultivados, mesmo que a espécie esteja extinta em seu hábitat natural. E eis que sim, é possível reintroduzir ao menos uma das espécies arbóreas nativas da Ilha de Páscoa!
Infelizmente a reintrodução do Toromiro não tem se mostrado fácil, pois das vinte tentativas registradas, ao que tudo indica até hoje nenhuma foi bem sucedida
2. Mas os esforços continuam, e quem sabe em breve a espécie consiga voltar ao ambiente que, apesar de todas as transformações pelas quais já passou, não deixa de ser seu local de origem. Ou será que mesmo depois de tudo o que aconteceu a espécie logo irá desaparecer por completo?
Em meio a estes pensamentos, enquanto caminhava, lembrei mais uma vez daquela época no Mestrado em que brincávamos com a ideia de reflorestar a Ilha de Páscoa. Apesar do sol, fazia frio na primavera escandinava. Respirei o verde daquele local e segui em frente até encontrar alguém. "Por gentileza, onde posso encontrar a árvore de Toromiro?", perguntei a uma funcionária do Jardim Botânico de Gotemburgo que cuidava de alguns canteiros próximos da entrada. "Fica logo ali naquela estufa", apontou. Mais alguns passos e lá estava ela, estendendo seus galhos em busca de luz. Alheia aos acontecimentos do passado e às incertezas do futuro, decerto preparava-se para a próxima florada.
[1] Termo reflorestamento utilizado no sentido popular de restauração da vegetação, e não no sentido acadêmico/profissional de plantio de eucalipto ou qualquer outra árvore com fins de exploração.